top of page

Não sabemos nada, mas somos Tudo

  • Foto do escritor: jg
    jg
  • 24 de mai.
  • 10 min de leitura

Atualizado: 2 de out.


ree

Nem sei por onde começar, mas vou tentar… A filha mais velha, o genro e o neto, depois de uma semana, partiram da ilha. É sempre muito bom, raro e especial quando vêm de longe e os podemos ver e sentir ao vivo, finalmente perto.


No domingo passado foram as eleições, sobre as quais não gosto nem costumo pronunciar-me, apenas para, uns dias antes, pedir ou sugerir que votem. Porque, embora também eu, como tantos, tenha instalada uma descrença cada vez maior em relação à capacidade dos políticos fazerem realmente a diferença neste mundo tão globalizado e com prioridades cada vez menos humanas… Ainda assim, dizia eu, prefiro imaginar que os resultados são o mais possível representativos da verdade do maior número de pessoas… Garanto-vos que, por mais que me possam desagradar os resultados às vezes, prefiro sempre a verdade do que se está a passar, porque sou das que olha também sempre para a frente, de frente.


Muita gente infeliz, com medo, sozinhas, vulneráveis, cansadas, deprimidas e descrentes, também destes 50 anos de democracia portuguesa, 50 anos de muitas e grandes transformações no mundo, duas gerações ativas pelo meio do caminho — uma que conquistou e que, com outra, tentaram fazer um mundo melhor, mas que, em muitos aspetos, não conseguiram.


Não quero nem vou analisar camadas de complexidade aqui publicamente, nem “achar coisas”, nem escolher reparar no que piorou ou melhorou. Há milhares de perspetivas e possibilidades de visões e olhares, todas pertinentes para alguém. E eu, que tenho sempre muitas opiniões, porque sou uma pessoa com o “vício” da análise, também sou, por outro lado, cada vez mais defensora do equilíbrio e da tolerância, que tento pôr em prática onde realmente posso fazer a diferença: no meu dia a dia e perto de mim. Só.


Vem aí uma geração nova, que não conheceu a ditadura, nem a “pobreza inata e definitiva”, e o seu caminho que, de direito quer traçar, vai ser o dela, o nosso, o possível no mundo que herdaram… Está a andar…


Estive uma semana, algo inédito nestes últimos 5 anos, sem abrir o Instagram, sem vos dizer bom dia e sentir-vos desse lado… Passei a semana a tratar de mim, alternando com o prazer de termos cá a filha, o genro e o neto querido. Fui contando esta história a poucas pessoas e aproveitando para chorar o que não queria arrastar comigo para o resto da vida.


Na segunda-feira, ao que parece a quem foi sabendo da história, salvei uma vida. A vida de um jovem de 25 anos, o B., que, pela segunda vez, tentou acabar com tudo — certamente com muito sofrimento e desesperança neste mundo também doente.


O que decidi agora contar-vos desta triste história que, por agora, acabou bem, tem apenas um propósito. O propósito de partilha do que não me sai da cabeça, do corpo e da alma — de quem sabe, em primeira pessoa, que tocou ou foi tocada por algo maior. Algo que pertence a todos os que agora me ouvem com atenção e que queiram guardar dentro de si…


Vocês sabem, pelo que vão percebendo por aqui há anos, o quanto detesto e resisto a fazer exercício. Apesar disso, porque sei o quanto me faz falta mexer um bocadinho o corpo — para além do que me mexo na mente — ando sempre à procura de exercícios, práticas e rotinas, de preferência micro e fáceis, mas eficazes, que consiga manter com o passar do tempo.


Há três anos consegui finalmente comprometer-me: “enquanto tiver pernas, vou andar todos os dias no mínimo 10.000 passos.” Arranjei um segundo “plano-truque” para quando, alegremente, me preparasse para desistir (não sofro com isso) e finalmente o meu cérebro entendeu que, tal como lavamos sempre os dentes, andar faz parte da minha rotina diária e obrigatória. Três anos depois, gosto? Não. Custa-me? Também não, porque já não penso nisso.


Na segunda-feira, porque a filha, o genro e o neto estavam cá, logo cedo os passos ficaram dados — muitos mais passos, bons passos. O fim do dia foi passado a trabalhar e a estudar, e depois o jantar foi cedo e despachado.


(20:30) Levantei-me de repente e fui mudar os calções com que durmo para uns calções de ginástica.

— Estás a fazer o quê? — perguntou o P. espantado.

Hesitei, sem conseguir encontrar uma resposta.

— Ai, deixa-me! Vou andar…

— Andar?... Mas se já deste mais do que os passos da conta?

— Pois… Ai, deixa-me!


E saí porta fora, estranhamente leve e determinada, e fui em frente, na direção sul, pela passadeira de cimento que atravessa a ilha de uma ponta à outra, na direção da praia oceânica.


Não tive um pensamento de estranheza, apesar de tudo ter sido muito estranho, e fui andando até ao fim das casas, onde começa a passadeira de madeira que atravessa o início do grande areal até às casas de banho da praia.


Hesitei mais uma vez no lusco-fusco bonito e cor-de-rosa… Nunca, quando me falta completar o número de passos do dia, sigo em frente pela passadeira de madeira. NUNCA. A verdade é que nem costumo ir até lá à ponta, porque prefiro ir controlando a distância e os passos mais perto de casa, para garantir que a conta é mesmo certa - 10.000… E já aconteceu muitas vezes fazer os últimos passos em frente ao portão de casa para não precisar fazer nem mais um. E os passos do dia estávam ultrapassados…


(Posso ir à praia e dar a volta, pensei eu…

Estás maluca, Joana? É o quê? Não vais nada pela praia, vai ficar escuro antes de voltares. E porquê?)

(Vou só até ao cruzamento das passadeiras das casas de banho…)


Avancei, sempre leve. Filmei-vos a paisagem bonita, que nunca cheguei a partilhar (20:40). Chegada ao cruzamento das passadeiras de madeira, em frente mais uns metros terminava uma e depois era só areia até ao mar, entre dunas. À esquerda, outra passadeira que vai longe até à praia grande dos chapéus de sol e do bar. Voltei a hesitar… Era mais do que hora e momento de voltar para trás…


(Vou só pela esquerda, contorno as casas de banho, passo pelo fim desta passadeira e volto para trás…)


Depois de dar a volta, pelo canto do olho, no fim/início da passadeira por onde voltaria, reparei num saco transparente fechado com um nó. Consegui ver um telemóvel, uns óculos e uma carteira masculina.


— Oh… Alguém deixou cair de um saco da praia, pensei.


Olhei à volta e baixei-me para o apanhar. Levantei-me enquanto a minha mente começava a acelerar para decidir o que fazer, a quem telefonar, a quem entregar, e o telemóvel tocou dentro do saco…


— Estou? Boa noite, ia a passar, acabei de encontrar o telefone, o saco…


— POR FAVOR!!!!!!!!!!!! ESTÁ ONDE?!!!!!!!!! QUEM FALA?!!!!!!!! ONDE É QUE ESTÁ?!!!!!!!! O MEU FILHO!!!! É DO MEU FILHO!!! DEIXOU-NOS UMA CARTA!!!!


Não me lembro, a partir daí, do mundo à minha volta, da areia, do céu, da vida. Comecei imediatamente a correr por instinto em direção à praia, enquanto ouvia aquela mãe desesperada contar-me que o filho já tinha tentado uma vez pôr fim à vida, e que desta vez tinham encontrado a carta de manhã e que havia uma fotografia que parecia ser da ilha.


Ouvi-me perguntar-lhe que idade tinha e como se chamava. “B., 25 anos, mas parece mais novo…”


Continuei a correr sem hesitar na direção, já não a ouvi dizer-me que ia mandar-me uma foto dele. Por precaução, dei-lhe o meu número de telefone, caso acontecesse alguma coisa, e corri, corri pelo areal entre as dunas, em direção à beira-mar.


Sempre a correr, olhei para os lados da praia enorme e deserta e vi, em frente, um casal de meia-idade, ele a pescar. Passei por eles sempre a correr e decidi ir pela esquerda, enquanto aos gritos lhes perguntei se tinham visto alguém, um jovem.


Eram franceses. Não perceberam nada. E eu sou uma tragédia a falar línguas, porque um bicho-do-mato pratica pouco a fala… Sempre a correr, ainda percebi que apontaram para o meu lado. Entretanto, a uns metros deles, cruzei-me com um jovem que também pescava, provavelmente o filho. Gritei-lhe em inglês que estava à procura de alguém, que era uma emergência, e que, se me ouvisse gritar, teria de me ajudar. O meu inglês é melhor do que o francês, pareceu-me que percebeu, mas sorriu, acenou com a cabeça e continuou calmamente a pescar como se eu lhe tivesse desejado boa pesca…


Lembrei-me da mãe na minha mão.


— Estou?

— ESTÁ ONDE?!!!!!!!!!!!

— Estou na praia. Vim procurá-lo.


(Lá ao fundo, na água… Quase à beira-mar, uma mancha, um vulto escuro… Será uma pessoa? Um corpo?)


Continuei a correr e disse à mãe que achava que o estava a ver, que o tinha encontrado e, enquanto isso, percorri os últimos metros, 'dos mais difíceis e tristes da minha vida', com a mãe dele na mão e a preparar-me para a aflição do que estava prestes a encarar e partilhar…


Olhei para trás e gritei pelo jovem filho dos franceses até ter a certeza de que viria.


Estava meio a boiar de lado, quase à beira-mar sem ondas. Os olhos abertos e fixos a olhar o vazio. Muito branco e magro, encovado, com os braços dobrados e as mãos encolhidas e hirtas. Tão, tão vulnerável. Tão, tão sozinho…


— Estou? Encontrei-o! Preciso de desligar para o ajudar. Vai correr tudo bem! Tem o meu telemóvel, ligue-me daqui a uns minutos.


— Oh… És o B., não és? - disse eu, enquanto me ajoelhei. Sustive a respiração para respeitar o silêncio e agarrei-lhe a cara com as duas mãos. Vai correr tudo bem. Vais ficar bem. Prometo…


— Temos de o tirar daqui, de o despir já, tentar secá-lo e esfregar-lhe o corpo, porque está em hipotermia, ouvi-me dizer ao outro jovem, numa trapalhada de inglês.


Percebi que o casal de franceses também chegava, entretanto, para ajudar.


A mãe e o meu telefone não paravam de tocar. Fui-me afastando para falar com todos , 112, polícia marítima, que já tinha uma participação desde a tarde…


Escuro, noite breu, todo esfregado e enrolado em toalhas, inerte. Eu a fazer-lhe perguntas baixinho para que não adormecesse ou desmaiasse, e ao mesmo tempo na dúvida se lhe estaria a gastar os últimos respiros. Consegui arrancar-lhe o bairro de Lisboa e disse-lhe que estava a morar na ilha há cinco anos, mas que também era de lá.


Começou a ficar vento. Fizemos uma barreira com os nossos corpos, sem parar de o esfregar. Parecia-me que estava a respirar pior…


(Mas por que não vem ninguém?! São 5 minutos para chegar de lancha aqui!, desesperei-me.)


— Estou? É o senhor que me ligou há pouco a pedir informações e o meu contacto? Por que não vêm?!

— Ah e tal, estamos a decidir qual a embarcação, qual está disponível… Tem de ter paciência, já assinalámos o pedido…


Telefonou-me outra senhora, que percebi não ser a mãe. Senti-a desconfiada da minha pessoa. Pausadamente, foi-me fazendo perguntas: onde estava, quem era, o que se passava, como estava o B. Contei-lhe tudo pacientemente, em transe. Acabámos as duas a chorar, eu a dizer-lhe que ele parecia ser muito querido e muito triste, e que tinha sido uma sorte tê-lo encontrado.


Explicou-me que era mãe do único amigo de infância dele, e que ele era de facto muito querido. Um miúdo muito tímido e inteligente, mas que estava sempre muito sozinho. - Sabe, ele é um miúdo impecável. Não bebe, não fuma, mas é muito tímido e tem razão, deve estar deprimido.


— Tenho de desligar. Diga à mãe que vai correr tudo bem…


— ESTOU?!!! ESTÃO À ESPERA DE QUÊ?!!!!!!!!!!!

— Já é prioritário…

— PRIORITÁRIO?!!!!! MAS QUE PORCARIA DE PAÍS É ESTE, EM QUE NÃO HÁ UM HOMEM A 5 MINUTOS DE DISTÂNCIA QUE SE META NUMA PORRA DE UM BARCO — NEM QUE SEJA DE UM PESCADOR E VENHA BUSCAR O MIÚDO QUE NOS ESTÁ A MORRER NOS BRAÇOS PARA O LEVAR PARA O HOSPITAL?!!!!!!!!!!

(Silêncio)

— Já vamos…

— Sim. Respirei fundo. Agora vai ensinar-me a fazer a manobra de salvamento ou lá como se chama.

— A senhora não sabe… o esterno…

— PORRA!!!!! Onde no esterno? (4 dedos acima na direção da garganta…) Quantas vezes a pressão com as palmas da mão? (30) E depois a respiração? A língua? Quantas vezes? (3) E depois repito tudo? (Sim). Ok, até já.


No meio do escuro, lembrei-me do P. que devia estar preocupado sem saber de mim. Liguei-lhe e disse-lhe que viesse ter imediatamente à praia com um edredão de penas e um cobertor antigo de papa. Rápido! Diz ele que percebeu a urgência na voz, mas não a tragédia, achou que estávamos, filhos e neto, na praia a ver as estrelas, cheios de frio e sem ele.


Acendi a lanterna do telefone para que nos vissem do mar.


Dez minutos depois, estavam lá três homens grandes que hesitaram em molhar os sapatos ao sair do barco… (É a segunda vez, num curto espaço de tempo, que assisto a uma cena idêntica e ainda não me conformei.)


Chegou também, entretanto, outro barco dos bombeiros, dois homens e uma rapariga.


— 31º de temperatura. Temos de o levar imediatamente.


Enrolado no nosso edredão de penas com a capa às risquinhas azuis. Dois barcos de socorro e não tinham uma manta térmica para um jovem a morrer com hipotermia…


— Pois… Acabaram…


(A próxima vez que for às compras, vou à loja do chinês comprar uma.)


Desapareceram no mar e ficámos ali no escuro. Depois de fazer um resumo enervado e baixinho ao P., pedi-lhe que explicasse aos franceses o que se tinha passado. Eles achavam que era um familiar ou conhecido nosso.


Sem ver nada, ouvi a senhora francesa perguntar se teríamos algumas toalhas que lhes pudéssemos emprestar, porque tinham chegado nesse dia à casa alugada de férias e as toalhas tinham ido todas com o rapaz.


O meu cérebro, zonzo, acelerado e ainda em choque, percorreu o armário lá de casa, as gavetas, a arca e os sacos debaixo da cama para tentar “salvar” a senhora do deserto das toalhas e, ainda no meio do choque, declarei:


— Nous sommes minimalistes!


Regressámos pela passadeira em silêncio. Passámos em frente à casa deles, que nos convidaram para beber qualquer coisa…


— Obrigada, preciso de ir chorar.


Chorei muito, muito, enquanto caminhei mais não sei quantos passos em frente a casa para esgotar a energia das pernas que ainda me sobrava. Chorei muito, com a sensação da urgência acachapada ao corpo e com a tristeza profunda de o imaginar a ir-se embora sozinho, tão sozinho, na água e na escuridão, caso não tivesse ido lá ter.


A noite passou, comigo a acordar e a adormecer.

(Será que se salvou? Joana… Foste lá ter, sem saber porquê, não foste? Claro que sim…)


Na manhã seguinte, telefonei para o hospital e confirmei o que já sabia. Ainda assim, chorei muito de alívio.


A mãe ligou-me e disse-me que o filho tinha perguntado por mim.


Acabei por dar boleia à mãe e à amiga, e insistiram para que fosse lá ter com ele às urgências.


A mãe conseguiu que eu entrasse sozinha. Desfoquei os olhos e fui à procura dele passando pelo meio dos corredores das urgências abarrotadas de pessoas sozinhas à espera.


Reconheci-o, outra vez a uns metros… Mais colorido e cheio de fios. Senti a pressão do eventual valor daqueles minutos e do que eu, improvisadamente, lhe diria. Falei calmamente, mas sem parar, e entre uma catrefada de disparates, fui intercalando coisas sérias, recados, curiosidades da vida e dificuldades, tentando abrir um espaço, o possível em tão pouco tempo, para uma confiança que lhe queria garantir para o futuro. Apesar da timidez gigante e de não ter conseguido olhar para mim, percebi-o curioso daquela maluca e consegui arrancar-lhe pelo menos três esgares de sorrisos.


Soube depois pela mãe, que ia ser transferido para um hospital central em Lisboa, e que ia ser acompanhado. Fiquei contente e aliviada.


Antes de sair, fui recuperar as nossas roupas e as toalhas da francesa, enfiei tudo numa máquina de lavar e secar enquanto fui às compras, e voltei para casa, para o sofá de onde no dia anterior me tinha levantado decidida, sem saber por quê…


Agora já sei. E vocês também.

 
 
 

Comentários


bottom of page