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Comer Carne (1)

  • Foto do escritor: jg
    jg
  • 10 de fev. de 2024
  • 3 min de leitura

Atualizado: 23 de fev. de 2024

Não me é fácil escrever sobre o facto de comer carne. Muitas questões e variáveis envolvidas tornam este tema demasiado complexo, para que, possa/consiga, em ‘três linhas’, resumir o que EU penso e sinto sobre o assunto de uma forma tão pessoal, onde apesar de tudo o que envolve uma morte, cabem também vidas e Amor. Vou escrevendo, vou contando, vou partilhando.


(2010) Mães da Minha Vida, no País das Maravilhas

Campo de erva verde e papoilas vermelhas e céu azul ao fundo
Campo de papoilas no Alentejo

Caí no buraco, de repente estava ali. O calor, intenso, parado, do Alentejo.


Fui de manhã, com a mãe-amiga, as duas cúmplices e contentes, juntas.


Comer Carne em Modo Mais Sustentável


Uma casa, um telheiro, mesas, alguidares, homens e mulheres, carne de dois porcos, alimento para todos, os que ali foram ajudar, até ao ano que vem.


Estranham-me apenas no segundo antes do meu primeiro sorriso, para logo em seguida ficarem contentes por mais dois braços. Para eles é assim simples.

Fico encarregada de tomar conta do fogão que vai cozinhando petiscos e preparando o almoço. Embalo carnes e banhas, congelo em doses, misturei temperos. Ninguém questionou nunca se eu o saberia ou poderia fazer, tenho dois braços…


Quase todos mais velhos, eles e elas, marcados, desdentados, leves… Debaixo do telheiro corre uma aragem morna a contrariar o calor de verão avulso.


Os homens afiam as facas e separam, limpam, cortam, migam. Um cachorro chamado Andreia Joaquina da Silva, uma cadela velha a Maravilha.


Contam-me que nem sempre foi assim, homens junto das mulheres a fazer aquele trabalho, a eles cabia-lhes matar o animal, mas que agora já é diferente.


Encho pela primeira vez os pulmões de ar, suspiro fundo. Sinto-me bem ali, só eu, acompanhada, segura…

A mesa grande da cozinha começa a compor-se. O panelão de sopa farta borbulha. As primeiras carnes derretem na gordura fresca, os temperos, o cheiro dos coentros, alhos e pimentão.


Uma senhora de cabelo branco, vestida de preto, vai lavando a loiça. Faz também pacientemente uma salada de frutas, mais outra de alface e tomate da horta, perfeitas. Corta-se o pão fresco e denso.


Todos à mesa, já de tarde, desta vez o impulso enraízado foi maior e os homens sentaram-se todos juntos de um lado e as mulheres do outro. O calor agora lá fora está no máximo, o cachorro gane porque ficou sozinho, e a D. Arlete, senhora da casa, – coitadinha da Andreia Carolina da Silva… Não quer ficar sozinha! Um homem levanta-se e vai abrir a porta à cria, que sossega debaixo da mesa e dos nossos pés.


Lição de vida, falou-se e ouvi falar de tudo, da natureza, das plantas, doenças e dificuldades deste ano. Trocam-se sabedorias e relaxa-se com a sopa a abarrotar no prato. Os impostos, a horta, os políticos, a agricultura, Cuba, o casamento do Lobo Antunes, as febras os torresmos fininhos, azeitonas, a enorme e maravilhosa salada, batatinhas, vinho tinto, claro.


A senhora de preto bebe Coca-Cola zero, porque está a tomar medicamentos. – A Coca-Cola deve ter qualquer coisa, que até limpa uma moeda, comenta. - Sabes Joaninha, aqui podem faltar muitas coisas mas ninguém passa fome, dá para todos. Só não há para quem não quiser trabalhar!… Acho que consegui, ainda assim, sorrir, ainda que, com o olhar desfocado de quem assistia à explicação, mais certa e simples, de toda a minha vida.


Ainda fomos à horta, onde estivemos as duas, em silêncio, sentadas no chão ao sol, a apanhar ervilhas e favas, no meio de um mar de flores, tantas papoilas. Suspirei fundo outra vez.


Regressámos em conversa, com tempo e intimidade e as emoções demasiadas. As lágrimas caíam agora no silêncio, pus os óculos escuros e chorei o tempo que durou o pôr-do-sol.

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